The Good Place e o conceito humorístico de céu e inferno

The Good Place é uma série de humor criada em 2016 e exibida NBC e Netflix. Atualmente em sua terceira temporada, com a quarta em produção, a série apresenta de forma divertida questionamentos sobre ética e moral, além dos pensamentos sobre a vida pós-morte.

09/03/2019 Última edição em 09/03/2019 às 18:35:17

O senhor tem um momento para falar sobre a morte?

Repentinamente você acorda em um local estranho, aparentemente um escritório. Você não se lembra o que lhe aconteceu e não tem a menor ideia de como chegou naquele lugar, até que surge um homem gentil, bem trajado, de terceira idade e o conduz até uma sala privada onde te explica que você está morto, mas devido suas ações durante sua vida, conseguiu uma passagem para o que alguns chamam de céu, outro de paraíso, mas para você é apresentado da mesma forma que um corretor de imóveis lhe apresentaria um novo projeto, como o Lugar Bom. Essa é a maneira como os primeiros minutos de Eleanor Shellstrop (Kristel Bell|) são exibidos na série The Good Place, criada por Michael Schur e exibida pela NBC desde setembro de 2016, disponível na Netflix.

Bem-víndo a eternidade

The Good Place é uma série de humor norte-americana criada pelo diretor, escritor e ator Michael Schur, nome envolvido em trabalhos como The O.C., Saturday Night Live e The Office. A série possui um formato simples que lembra um pouco o processo de escrita do autor de Código Da Vinci, Dan Brown, com episódios curtos (aproximadamente vinte minutos cada), temporadas breves (doze episódios por temporada, atualmente três), mas uma narrativa com ganchos sutis que o conduzem de episódio em episódio até que você tenha engolido uma temporada inteira sem nem ao menos perceber.

A trama gira em torno da personagem Eleanor Shellstrop, que descobre ter morrido e ido para o Good Place, uma versão moderna e sofisticada do paraíso onde as pessoas habitam em vilas utópicas e felizes desenhadas sob medida para atender aos sonhos e necessidades de cada um. Cada pessoa que morre e vai para o Good Place possui uma casa de acordo com sua personalidade, uma alma gêmea para lhe acompanhar por toda a eternidade e uma nova vida repleta de prazeres, como voar e ter acesso ao que desejar no momento em que desejar, bastando solicitar. Algo semelhante a um retiro de férias divinas ou uma gameplay de The Sims com todos os melhores cheats ativos.

As possibilidades nesse céu sem deuses e sem anjos, completamente desprovido de relações com religiões (quaisquer que sejam) são infinitas. Michael (Ted Danson) é o arquiteto do Good Place em que a história se passa, apenas uma das infinitas vilas perfeitas que existem espalhadas pelo universo além-Terra, cada uma com seu próprio arquiteto. Desejoso de fazer da sua primeira vila um lugar inovador, Michael decide ser o primeiro arquiteto fisicamente presente em seu local de trabalho, e parece empenhado em tornar a experiência de todos os moradores absolutamente perfeita com a ajuda de sua assistente, Janet (D'Arcy Carden), uma consciência onisciente que age como bando de dados de toda a existência do cosmos, mas assume a forma de uma gentil e bondosa mulher, com habilidades peculiares, como teleportar-se sempre que invocada ou materializar o que lhe for pedido, desde um prato de comida favorito a um livro específico ou até mesmo um videogame de última geração.

Eleanor logo percebe que não poderia estar em um melhor lugar se não fosse por um único detalhe, ela não deveria estar ali. A vida que é apresentada sobre Eleanor pelo arquiteto, Michael, definitivamente não é a sua. Eleanor teve uma vida mediana (como costuma repetir constantemente), mas também egoísta, se preocupando apenas com a sua felicidade, independente de quem fosse incomodar, algo totalmente diferente dos créditos que lhes são dados, como ser uma advogada que lutou pela libertação de inocentes da prisão, ou uma ativista em pró das causas humanitárias. Diante da sensação de se sentir uma farsa, Eleanor recorre ao homem lhe apresentado como sua alma gêmea, um intelectual professor de filosofia, moral e ética, Chidi (William Jackson Harper) que de forma relutante assume a missão de tentar transformar Eleanor em uma pessoa merecedora do Good Place antes que alguém descubra seu segredo. A única coisa com que nenhum dos dois esperava é que, de alguma forma, as más ações de Eleanor parecem afetar o Good Place de forma caótica, como tempestades de lixo, crateras abrindo no centro da vila e até mesmo coisa insanas como joaninhas gigantes e camarões voadores. Em poucos minutos a pós vida de Eleanor passa a se resumir em uma corrida contra o tempo para evitar ir para o Bad Place, algo que lembra muito o inferno descrito pelos cristãos.

Um elenco do paraíso

Kristen Bell é definitivamente a escolha certa para Eleanor Shellstrop. A aparência de pessoa do bem e a voz doce que narra alguns episódios da série documental Explained (ou para os mais adultos, a voz da Gossip Girl) se encontram com uma personalidade agressiva, atitudes rudes e um eterno ar de “foda-se”. A luta por se tornar uma pessoa melhor se encontra com uma constante auto sabotagem, resultando cenas épicas e divertidas que poderiam ser facilmente ser os pontos máximos de The Good Place se não fosse a acirrada concorrência com os outros protagonistas da série, tão bons e tão bem trabalhados quanto Eleanor.

Temos Chidi Anagonye, um confuso retrato do extremo estereótipo libriano. Absurdamente indeciso, confuso, inseguro, mas ao mesmo tempo inteligente e sensato, simplesmente a personalidade mais improvável para ser posto como a alma gêmea de Eleanor, mas que ao longo da série se mostra a melhor personalidade possível para tal.

Tahani Al-Jamil é outro gole do néctar dos deuses, interpretada pela modelo e apresentadora Jameela Jamil, Tahani é a personificação da etiqueta, dos bons costumes, da beleza e do espírito de elitista da eterna anfitriã, quase uma celebridade. Constantemente falando sobre seus amigos astros de cinema que possuía em vida, ela é, dos pés a cabeça, um eterno lembrete para Eleanor de tudo o que ela não é, e inveja por não ser, mas de um jeito tão pomposo que dificilmente conseguiria deixar alguém irritado. Só seria mais completa se fosse uma Kardashian.

Jianyu (Manny Jacinto) é a alma gêmea de Tahani no The Good Place, um homem oriental que se apresenta como um monge budista com voto de silêncio e ao mesmo tempo representa o maior desafio para um bom ator, saber encarnar de forma convincente mais de um tipo de personalidade. Jianyu consegue brilhar na série até em cenas onde não faz mais nada além de correr com uma vela estrelinha na mão, ele é divertido por si só, mas seu grande trunfo está em convencer o espectador daquilo que você menos espera.

Os quatro personagens formam o núcleo central de The Good Place e combinam tão bem uns com os outros que se torna praticamente impossível imaginá-los separados, mas eu estaria sendo injusto se não desse os devidos créditos às outras duas grandes estrelas dessa obra de arte do humor, uma delas a maior.

Michael (Ted Danson ) é um charme à parte e traz aquela essência de camaleão para a trama (exatamente como Joseph Campbell descreveria seu arquétipo) ele consegue ser engraçado como aquele tio da piada do pavê e ao mesmo tempo intimidador como aquele chefe do escritório que lhe deu um prazo absurdamente apertado para entregar o relatório. Michael é o personagem que mais se desenvolve ao longo da série, sendo ao lado de Eleanor o que mais possui mudanças significativas de comportamento, se deixarmos de lado o meteoro Jianyu, cuja curva de desenvolvimento tem um pico e depois estagna.

E aqui lhes apresento a cereja do bolo, Janet (D'Arcy Carden). A assistente de Michael é sem dúvidas a melhor coisa que aconteceu nessa série e provou o quão versátil e profissional é o trabalho de D’Arcy Caren. Por ser uma consciência onisciente e quase onipresente do universo, Janet tem uma personalidade que deveria expressar poucas emoções, todavia, por ser feita praticamente como uma Siri ou uma Cortana do paraíso (forma como Eleanor chega a chama-la em um dos episódios), Janet adota uma postura solícita e gentil, mas que deságua em uma personalidade hilária que pode levá-lo a pausar um episódio para conseguir respirar e parar de rir.

Em todo Good Place existe uma Janet, ou para ser mais preciso, uma Janet Boa, mas em contrapartida no Bad Place existe uma Janet Má (sim, nós vemos os dois lados da história) assim como existe também um meio-termo que atua no entre “céu-terra-inferno”, as Janets Neutras. A partir dessa premissa já se tem uma ideia de que D’Arcy Carden é colocada para atuar com três personalidades diferentes, isso sem contar as mudanças que Michael tenta fazer em sua assistente para torná-la mais versátil para seu projeto (ou as mudanças que Michael não planeja) e acabam fazendo mudanças absurdas na personalidade de sua Janet. Quer um desenho melhor dessa personagem? Imagine um elfo doméstico de Harry Potter em forma humana ou um Sebastian Michaelis de Kuroshitsuji em forma humilde, eis Janet.

Além do núcleo da trama, há outras estrelas faiscantes como a belíssima Maya Rudolph, que interpreta a juíza da segunda e terceira temporada, com sua habilidade inquestionável de transmitir humor seja com uma linguagem informal e inesperada para uma juíza do além ou sua linguagem corporal exagerada que provavelmente você irá reconhecer de alguma tia briguenta sua.

A série é, sem dúvidas, rica em personagens benfeitos, coerentes com a trama e que se encaixam perfeitamente uns com os outros.

Muito mais do que apenas humor

Que The Good Place é um trabalho hilário e facilmente digestível isso não pode se negar, mas o que mais me chamou atenção para a série é a mensagem por trás de toda a comédia e humor (indicado para toda a família). A série é inteligente.

Chidi é o personagem responsável por trazer tantos elementos filosóficos e citações de pensadores importantes que não seria uma perda de tempo fazer anotações durante suas falas. De Frederich Nietzsche à Immanuel Kant, as referências de Chidi para analisar a sociedade e sutilmente criticar as religiões por meio da personagem de Eleanor citam pensamentos como existencialismo, utilitarismo e até mesmo o niilismo, que possui um episódio todo feito para descrever o caos que ele poderia representar para a mente de algumas pessoas.

Tahani pode se passar pela rica esnobe que você conhece da televisão para a frequentadora fiel da sua igreja que se enxerga como uma santa imaculada, mas não consegue ver a mancha de seu próprio orgulho. Somada com o objetivo de Eleanor, as duas representam uma crítica que a série faz sobre a motivação das pessoas em praticar boas ações, mas são apresentadas de forma superficiais, sem levantar debates ou discussões, de modo que apenas quem realmente para refletir sobre o que viu vai conseguir entender as alfinetadas à religiosidade que a série constantemente faz, mas que podem passar despercebidas por serem facilmente ocultas em piadas leves de humor gentil.

Jason Mendoza é outro personagem que traz muito questionamento se analisado com uma lupa, pois retrata a inocência de uma forma que poucos compreenderiam.

Mas o que fica de mensagem central, em minha concepção, para quem assistir The Good Place é o conceito de paraíso ou inferno. Seria um lugar, como a vila onde se passa boa parte da história? Um estado de espírito, como muitas vezes Eleanor e Chidi se sentem? Ou Sartre estaria absolutamente correto ao afirmar que “O inferno são os outros”?

Se houvesse um manual de instruções de como assistir The Good Place eu diria “assista mais de uma vez”, no mínimo três. Uma para se divertir, uma para tomar notas e uma para questionar o que lhe foi transmitido, e por fim faria um convite para voltar e ler essa matéria novamente, caso quisesse reformar alguns pensamentos, perguntas, críticas e questionamentos. A série é muito boa para quem quer ver algo rápido, mas ao mesmo tempo gostoso, como uma caneca de chocolate quente. Pode ser apreciada com toda a família em uma tarde no sofá ou maratonada no computador durante uma madrugada (se você não tiver problemas em acordar outras pessoas com gargalhadas), mas a maior estrela do show com certeza é o modo como a narrativa aborda o tema ética adornado em um universo de fantasia sem agredir a fé individual que cada pessoa tem em sua religião ou a convicção que um agnóstico ou ateu possui nas conquistas da ciência.

The Good Place é de fato um bom lugar, e mal esperamos pela quarta temporada, prevista para o segundo semestre de 2019.




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